25 de fevereiro de 2022 (atualizado) por Muita Viagem.
Mochilão pela Bolívia – Potosí
Potosí, na Bolívia, foi o lugar que mais me colocou para pensar durante os cinco meses que passei mochilando pela América do Sul.
O Cerro Rico, a montanha de prata em torno da qual cresceu Potosí, a cidade mais alta do mundo
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A verdade é que muitas atrações frequentadas por turistas não são propriamente turismo. Potosí é o maior exemplo que conheci de não-turismo como viajante: não há recreio ou lazer quando se conhece um lugar como as minas do Cerro Rico, a montanha que faz a fama local. Mas é definitivamente tocante.
A cidade, que já foi um dos lugares mais ricos do mundo e chegou a rivalizar com a capital do reino espanhol, Madri, durante a colonização, hoje faz parte do mais pobre estado da miserável Bolívia, também chamado de Potosí.
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A cidade de 140 mil habitantes vista do alto: Potosí já foi mais rica do que Madri
O Cerro Rico, a montanha que cospia prata e ainda engole homens, fez a fama do local e continua sendo o principal motor econômico da região e é o principal destino dos turistas na área.
É certo que, em Potosí, existem coisas mais bonitas que a visita ao Cerro Rico, mas poucas experiências na América do Sul marcam tanto quanto entrar nos túneis nos quais ainda trabalham milhares de pessoas –e morrem dezenas todos os anos.
O centro colonial de Potosí tem igrejas e prédios coloniais interessantes, mas admito que nada me saltou aos olhos, apesar de a cidade boliviana ser um Patrimônio Mundial da Unesco.
Não foi uma visão profunda, fiquei pouco tempo no lugar: como para muita gente, Potosí só fez parte do meu roteiro de viagem como um pit stop obrigatório. Meu destino era Tupiza, uma cidade no sul da Bolívia que também é ponto de partida para o tour no Salar de Uyuni. Não cheguei a dormir em Potosí.
Há igrejas e construções interessantes no centro histórico de Potosí
A cidade boliviana é Patrimônio da Humanidade pela Unesco
Por sinal, é comum quem está viajando pela Bolívia, principalmente mochileiros, só passar em Potosí como um pit stop para ir a cidade de Uyuni.
O Salar de Uyuni é o principal destino turísitico da Bolívia e um dos mais famosos cartões-postais da América do Sul –não por acaso, o deserto de sal é chamado de parque de diversões de fotógrafos pelas belezas.
Outra coisa que faz a fama de Potosí é a altitude: a 4.090 metros, o que é muito alto até para os Andes, a cidade é um dos centros urbanos mais altos do planeta. Vai faltar ar.
Apesar de todo o peso histórico e da realidade do dia a dia (o passeio nas minas, ainda em funcionamento e ainda matando muita gente, é assustador), Potosí é mais um Patrimônio da Humanidade pela Unesco que valeu a pena conhecer no mochilão pela América do Sul.
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Rota para o inferno: as minas de Potosí
Depois fiquei mal por tirar uma foto comemorando com essa roupa, mas náo tinha ido até as minas
Só decidi fazer o passeio pelas minas de Potosí em cima da hora. Os tours saem diariamente pela manhã e custam em torno de 100 bolivianos, com transporte até as minas, equipamento de segurança e guia.
Cheguei em Potosí de manhãzinha e vi o horário de ônibus para Tupiza, quase na fronteira da Argentina. Os ônibus só saíam à noite, então teria que ficar o dia inteiro na cidade a 4.000 metros de altitude e frio de rachar em julho.
Pedi um táxi até o centro histórico e esperei uma agência de turismo abrir para contratar o passeio.
Após acertar tudo –tem que assinar até um documento de responsabilidade, porque andar nas minas tem, sim, perigo real– nos reunimos com nosso grupo.
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As Minas de Potosí
A primeira parada no tour para as minas em Potosí, feito em parceria entre agências de viagens e cooperativas de mineiros, é para colocar o equipamento de segurança: macacão grosso, capacete com lanterna, botas.
Depois, conhecemos uma fábrica de refino de prata. A coisa já fica mais assustadora: as refinarias de minério da Bolívia são medievais.
O barulho das máquinas trabalhando, o cheiro de produto químico que deixa denso o ar rarefeito de mais de 4 mil metros de altitude, a completa e visível falta de segurança e os trabalhadores mineiros explorados há séculos.
É bem desconfortável imaginar que tem gente que trabalha ali diariamente.
As oficinas só não podem ser chamadas de o inferno na terra porque o inferno vai ser conhecido dali a pouco e fica embaixo da terra, nas entranhas do Cerro Rico, a ‘montanha que engole homens’, uma das designações mais famosas do morro.
As refinarias de prata são assustadoras
A segurança é mínima
Contaminação por mercúrio, desmoronamentos, mortes por silicose: os trabalhadores da prata em Potosí ainda convivem com muitos dos flagelos que mataram mais de 8 milhões de escravos indígenas e africanos durante a colonização espanhola entre os séculos 16 e 19.
O estudo está no livro de Eduardo Galeano “As Veias Abertas da América Latina” — uma obra muito interessante para inspirar em uma viagem pela América do Sul, está na bagagem de muitos mochileiros.
Hoje a prata já não é tanta, mas estima-se que nos séculos 16 e 17, até metade desse minério no mundo era extraída dali.
Agora, as cooperativas de mineiros lutam para continuar extraindo quase sem nenhuma tecnologia moderna o que resta de prata nos túneis abafados e escuros das quase duas centenas de minas de Potosí, na Bolívia.
O tour nas Minas de Potosí prossegue.
Antes de entrar em um buraco, o tour para em uma pequena vila mineira para conhecermos os mercados mineiros, onde os trabalhadores se abastecem antes de ir às minas.
O mercado de mineiros onde dá para comprar presentes para os trabalhadores
De álcool potável com graduação de quase 100 para beber (que pode ser tomado puro, mas é normalmente misturado meio a meio com água) a dinamite, equipamentos de segurança e comida, os trabalhadores de Potosí compram material, por conta própria, para a exploração do minério.
Os turistas são convidados a comprar presentes para os operários, que são entregues por meio do guia.
Os presentes são coisas úteis, produtos para serem consumidos no dia a dia. Pode ser bananas de dinamite ou água para beber, por exemplo.
Em seguida, adentramos às minas!
Na entrada, o vai e vem barulhento e o choque violento de carrinhos lotados de pedra, os trabalhadores concentrados, sujos e com as bochechas lotadas de folhas de coca para aumentar o vigor físico (todos, sem exceção, parecem ter as bochechas deformadas pela mastigação da coca) e o semblante cerrado não deixam dúvidas que o trabalho é difícil.
Os trabalhadores das minas esperam para entrar nos túneis
As folhas de coca são importantes para aguentar o trabalho desumano
Tio, o deus dos mineiros e senhor das entranhas da terra
Ar quente, viciado, corredores apertados, barulho etc. etc. etc.
O trabalho é duro e não rende muito
Ficamos quase uma hora dentro das minas, e não é fácil andar: o ar vai ficando cada vez mais viciado, muitas vezes é preciso esgueirar-se para ver os carrinhos lotados de pedra passarem pertinho, outras correr para abrir caminho aos grupos de trabalhadores e seus carrinhos, e o ambiente é sombrio.
Tão sombrio quanto o deus dos mineiros, encontrado em capelas rústicas aberta nas pedras: Tio.
O senhor das minas de Potosí, não por acaso, lembra a imagem clássica do diabo.
É ele quem protege a vida nos túneis escuros do Cerro Rico, em Potosí, Bolívia, América do Sul.